sábado, 13 de fevereiro de 2016

A cultura do palco (6) - Gil Vicente

Gil Vicente (1465-1536) foi um dramaturgo e poeta português. Criador de numerosos autos* e farsas, é considerado o maior representante do teatro popular em Portugal.
Gil Vicente terá nascido em Guimarães, no ano de 1465. O seu nome apareceu pela primeira vez ligado ao teatro, em 1502, quando escreveu e encenou o “Auto da Visitação” ou “Monólogo do Vaqueiro”, em homenagem ao nascimento do príncipe D. João, futuro D. João III.
O monólogo foi originalmente escrito em castelhano, em que um simples homem do campo expressa a sua alegria pelo nascimento do herdeiro do trono de Portugal, desejando-lhe felicidades.
O Auto da Visitação tem elementos claramente inspirados na "adoração dos pastores", de acordo com os relatos do nascimento de Cristo.
A encenação incluía a oferta de prendas simples e rústicas, como leite, ovos e queijos, ao futuro rei, ao qual se pressagiavam grandes feitos.
Gil Vicente que, além de ter escrito a peça, também a encenou e representou, usou o quadro religioso natalício numa perspectiva profana.
Gil Vicente tornou-se responsável pela organização dos eventos palacianos. Retratou através de suas peças, os valores populares e cristãos da vida medieval.
O teatro português não nasceu com Gil Vicente.
Já no reinado de Sancho I, os dois actores mais antigos portugueses, Bonamis e Acompaniado, realizaram um espectáculo de "arremedilho“ tendo sido pagos pelo rei com uma doação de terras.
O arcebispo de Braga, Dom Frei Telo, refere-se, num documento de 1281, a representações litúrgicas por ocasião das principais festividades católicas.
E há registo de outras representações anteriores ao “Auto da Visitação”.
No entanto, poucos exemplos restam dos textos pré-vicentinos e Gil Vicente é considerado o primeiro grande dramaturgo português.
A sua obra vem no seguimento do teatro ibérico popular e religioso que se fazia, ainda que de forma menos profunda que a do mestre. 
O seu teatro caracteriza-se por ser primitivo e popular, embora tenha surgido no ambiente da corte, para servir de entretenimento.
Gil Vicente escreveu mais de quarenta peças, em espanhol e em português, onde criticou de forma impiedosa a sociedade de seu tempo. O valor do teatro vicentino reside na sátira, muitas vezes agressiva, contrabalançada pelo pensamento cristão.
A sua obra é rica pela universalidade dos temas.
A sua observação satírica não deixou ninguém de fora: papa, rei, clero feiticeiras, alcoviteiras, judeus, moças casadoiras e agiotas.
A galeria de tipos é rica e variada e muitos foram ridicularizados: a imperícia dos médicos - “Farsa dos Físicos”, a prática das feiticeiras - “Auto das Fadas”, o comportamento do clero – “O Clérigo da Beira”, e por aí adiante.
São geralmente apontados, como aspectos positivos das suas peças, a imaginação e a originalidade; o sentido dramático e o conhecimento da problemática do teatro.
Alguns autores consideram que a sua espontaneidade, apesar de reflectir de forma eficaz os sentimentos colectivos e exprimir a realidade criticável da sociedade a que pertencia, perde em reflexão e em requinte.
A sua forma de expressão é simples e directa, sem grandes floreados poéticos.
A última obra de Gil Vicente, é um típico divertimento cortesão. Seguro do seu estilo, cria situações dramáticas, cómicas ou patéticas, equilibrando-as.
O Prólogo é apresentado de forma interessante.
Em lugar de um personagem, o autor faz entrar dois, um acorrentado ao outro, criando uma alegoria relacionada com um provérbio da época: "Se queres matar um homem prudente, ata ao seu pé um ignorante". 

O filho, Luís Vicente, na primeira compilação de todas as suas obras, classificou-as em autos e mistérios (de carácter sagrado e devocional) e em farsas, comédias e tragicomédias (de carácter profano). 

terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

A cultura do palco (5) – o espectáculo isabelino


O espectáculo teatral da época isabelina (renascimento/maneirismo/barroco) caracteriza-se pela valorização do texto enquanto elemento principal e aglutinador da acção.

Os temas e as formas de abordagem são muito variados tentando, sobretudo, corresponder aos anseios do público ao qual os autores se dirigem.

O espectáculo isabelino pode ir da levíssima comédia alegórica à profundidade escura de uma tragédia de contornos clássicos ou às histories(peças que abordam temas históricos).  Estas categorias principais admitem, consoante os críticos, os historiadores ou especialistas, uma série infindável de subgéneros.

Há, no entanto, formas de ultrapassar estas classificações. Shakespeare, para dar o exemplo mais famoso, mistura nos seus dramas o trágico e o cómico, o sério e o ridículo tal “como sucede na vida”. As suas peças alcançam uma dimensão que escapa à classificação académica e gera uma forma teatral muito particular.

O cenário do teatro isabelino não tinha um carácter representativo , não representava um ambiente particular.

O lugar onde a acção se desenrolava podia ser indicado por alguns acessórios ou, talvez, por elementos pintados na cortina mais recuada no palco mas nunca (ou muitíssimo raramente) através de elementos que transfigurassem o espaço de representação.

Era o espectador que tinha de imaginar ou deduzir o ambiente em que a cena se desenrolava partindo da acção e das palavras do texto. Os acessórios de cena só seriam utilizados caso contribuíssem para o desenvolvimento da cena e raramente seriam incluídos com a finalidade de indicarem o local da acção.
Como seria possível ao espectador seguir o percurso das personagens no espaço e no tempo ao longo da narrativa? Philip Sidney, um poeta da época, descreve assim um espectáculo:

“Agora vêem-se 3 mulheres que vão colher flores e, por isso, devemos crer que o cenário é um jardim. Depois percebemos que, no mesmo lugar, ocorreu um naufrágio e, então, censuramo-nos se não acharmos  que o cenário é um rochedo, mas do fundo deste surge um monstro horrível com fogo e fumo e, então, os pobres espectadores são levados a entrar numa caverna. Entretanto aparecem 2 exércitos, representados por 4 espadas e escudos, e quem terá o coração de pedra capaz de não permitir ver ali um campo de batalha?”

Era o actor, com o seu gesto e a sua palavra, que colocava a acção em determinado local ou expunha a passagem do tempo. Por isso mesmo os acessórios eram como extensão ou suporte da actuação dos actores.


Assim, a mímica dos actores tinha uma particular densidade, não por ser exagerada ou violenta, mas porque era elemento essencial para descrever tanto o estado de espírito e as reacções psicológicas das personagens como o local onde decorria a acção e o ambiente, de um modo geral. 

A cultura do palco (4) – teatro isabelino


O teatro isabelino (1558-1625) refere-se  ao trabalho teatral desenvolvido durante o reinado de Isabel I de Inglaterra (1533-1603), sendo associado, tradicionalmente, à figura de William Shakespeare (1564-1616) embora houvesse, à época, centenas de companhias espalhadas pelo país.
Considera-se que a era isabelina durou até o fim do reinado de Jaime I, em 1625, e mais tarde, incluindo seu sucessor, Carlos I, até ao encerramento dos teatros no ano de 1642, devido à Revolução inglesa.

O facto de se prolongar para além do reinado de Isabel I faz com que os espectáculos produzidos entre a Reforma e o encerramento dos teatros em 1642, se denomine Teatro Renascentista Inglês.
Shakespeare dedica a Jaime I algumas de suas principais obras, escritas para celebrar ascensão ao trono do soberano.

Otelo (1604),
O Rei Lear (1605),
Macbeth (1606 - homenagem à dinastia dos Stuart)
A Tempestade (1611 - inclui, entre outras cenas notáveis, uma "mascarada", interlúdio musical em honra do rei que assistiu à primeira representação).

O período isabelino não coincidiu cronologicamente, na sua totalidade, com o Renascimento europeu e menos ainda com o italiano, mostrando um forte acento maneirista e até mesmo barroco em suas elaborações mais tardias.

A época isabelina representou a entrada da Inglaterra na Idade Moderna, num mundo sob o impulso das inovações científico-tecnológicas como a teoria heliocêntrica de Nicolau Copérnico e das grandes explorações geográficas (colonização europeia da América do Norte).


A peça A Tempestade, por exemplo, é ambientada, não por casualidade, numa ilha das Caraíbas cuja população, representada simbolicamente pelo "selvagem" Caliban e pela sua mãe, a bruxa Sycorax, está submetida às artes mágicas de Próspero, isto é, à tecnologia e ao progresso científico dos colonizadores europeus. 

A cultura do palco (3) – espaço de representação


A representação teatral necessita de um espaço que a suporte.

Normalmente, quando pensamos em Teatro, imaginamos uma sala específica: uma plateia para os espectadores, um palco para os actores…
… mas, o espaço teatral (theatron, o local onde se vê), sendo uma manifestação da arte da arquitectura, tem-se transformado ao longo da sua história.

Não assume uma forma definitiva.

A partir da separação entre quem assiste e quem interpreta, houve necessidade de pensar o espaço de modo a responder a necessidades muito específicas.

É a tal separação entre plateia e palco.

Como se existisse uma fronteira entre o espaço real, habitado pelo espectador e uma outra dimensão, uma dimensão mágica: a dimensão da representação, onde algumas pessoas se transformam em actores e assumem outra realidade.

Enquanto o Teatro mereceu o apoio dos poderosos e foi manifestação de cultura (popular ou erudita) teve espaços arquitectónicos específicos para as suas representações (Grécia e Roma).

Após a queda do Império Romano do Ocidente e durante o período histórico que designamos por Idade Média, o Teatro foi considerado como obra de contornos pouco cristãos e quase desapareceu. Por essa razão, a arquitectura teatral deixou de ter visibilidade.

Quando regressou, na forma de Mistérios, o Teatro foi acolhido no próprio espaço da Igreja. Primeiro no interior do templo, mais tarde no espaço defronte à sua entrada.

A representação desenrolava-se em estrados erguidos para o efeito ou em carroças, quase sempre ao ar livre. Onde houvesse aglomeração de pessoas era um local adequado à representação teatral.

Isto fez com que, neste período, algum teatro ganhasse contornos mais populares e menos eruditos. A separação entre duas formas de expressão teatrais (uma para a elites e outra para o povo, separação que já vinha dois tempos do Império Romano) é cada vez mais notória.

Os trovadores, os malabaristas, actores e contadores de histórias, deslocavam-se em busca de público, representando tanto nas praças de igrejas e mercados como nos salões dos palácios da nobreza.

Naqueles tempos era o artista que procurava o público. Nos dias de hoje é o público que procura o artista, deslocando-se a locais específicos, as salas de espectáculo.

Com o Renascimento e na transição para o Barroco (séculos XVI/XVII), o Teatro ganha novamente notoriedade e conhece um período de grande expansão.

Ressurgem os espaços arquitectónicos exclusivamente destinados à representação teatral.

As características do edifício teatral irão evoluir e transformar-se mas o essencial da sua distribuição espacial fica definida pela tal fronteira entre espectador e actor, a tal linha imaginária que separa a plateia do palco.


Chama-se a este tipo de espaço, palco ou sala à italiana por ter sido em Itália que o conceito foi desenvolvido. 

A Cultura do Palco (2) – Sociedade e cultura


Luís XIV por Hyacinthe Rigaud (1701)

No período que designamos por Cultura do Palco (séculos XVII e XVIII, na Europa) vão desenvolver-se principalmente dois géneros de linguagem artística: o Barroco e o Rococó.

A igreja Católica, abalada pelas divisões religiosas provocadas pelos movimentos protestantes ao longo do século XVI, procurou reforçar a sua imagem através de uma forte disciplina interna.

No Concílio de Trento (1545-1563) a igreja Católica renegou o Protestantismo e reafirmou os seus dogmas doutrinais dando início à Contra-Reforma.

A Contra-Reforma pretendeu restabelecer, junto das comunidades, a imagem de uma igreja forte e gloriosa. A arte foi um dos meios utilizados para promover essa imagem de poder e glória!

A arte Barroca irá desempenhar esse papel propagandístico num período histórico que é actualmente designado por Antigo Regime.

O Antigo Regime foi um período marcado pela centralização política que veio a culminar, nos finais do século XVI, com o Absolutismo régio de origem divina (o Rei tem poder absoluto e esse poder é-lhe conferido por Deus).

O Absolutismo consiste, basicamente, na concentração de poder nas mãos de uma única pessoa, o Rei.

Este poder absoluto é suportado por uma aparelho de estado cada vez mais complexo e centralizado. O Rei e os seus acólitos tudo vigiam, tudo controlam e tudo subjugam à sua vontade, supostamente a vontade de Deus.

Estruturas fechadas e dominadoras, a igreja Católica e o estado Absolutista impuseram a obediência à ordem estabelecida recorrendo a processos frequentemente violentos e duramente repressivos (a Inquisição e as polícias política).

Uma das intenções básicas do Absolutismo era a estabilidade do regime social, mantendo uma sociedade de ordens onde as mudanças eram rigidamente limitadas pela lei.


As criações intelectuais (as artes plásticas, a literatura, a criação científica) serão utilizadas como forma de propaganda fazendo passar para as massas populares o discurso ideológico dominante. 

A Cultura do Palco (1) - introdução





David por Miguel Ângelo e Bernini, renascimento e barroco

O Renascimento reintroduziu o conceito de ordem e equilíbrio desenvolvendo as formas artísticas herdadas da Antiguidade Clássica.

O Barroco é um estilo artístico que marca uma reacção da igreja Católica à Reforma Protestante.
Encenação, sentido de palco, criação espectacular.

Pode considerar-se o Barroco como uma continuação natural do Renascimento.

Ambos os movimentos compartilharam o interesse pela arte da Antiguidade clássica, embora desenvolvendo interpretações muito diferentes.

Enquanto os artistas do Renascimento valorizavam sobretudo qualidades de moderação, economia formal, austeridade, equilíbrio e harmonia…


…os do Barroco mostravam maior dinamismo, contrastes mais fortes, maior dramaticidade, exuberância e realismo e uma certa tendência para o decorativismo.