domingo, 20 de abril de 2008

Sobre o Expressionismo

Edvard Munch, Cinzas (1894) Óleo sobre tela - 120 x 141 cm


Segue-se um texto retirado do "Guia de História da Arte" com direcção de Sandro Sproccati, editado pela Presença (5ª edição de 2002). É o texto que abre o capítulo 14 O EXPRESSIONISMO e que aqui vai ser por mim comentado.


"O aspecto mais notável da situação artística do início do século XX (ou do período que se designa por "vanguarda histórica") reside na tendência dos seus protagonistas para se organizarem em movimentos e grupos homogéneos, ou seja, em formações que nascem de convergências ideológicas muito precisas, baseadas em teorias comuns acerca dos significados e dos objectivos da produção artística. É quase inútil recordar que esses projectos nascem sob o signo do maior mito da época, , o que insiste na renovação radical e por vezes subversiva, da existência e da psicologia humanas. As bases teóricas são, na maioria dos casos, fixadas em proclamações apropriadas (os chamados "manifestos"), que irão desempenhar várias funções: em primeiro lugar, ratificar os estatutos a que é necessário obedecer para se pertencer a um determinado movimento; depois, constituirem outros tantos instrumentos de luta a utilizar contra os incrédulos; por fim garantir a identidade colectiva do grupo permitindo que cada adepto possa reconhecer-se nessa identidade."



Comentário:
Nota como os movimentos de vanguarda artística no início do século XX complementam a actividade artística com reflexões ou declarações de intenções através dos célebres manifestos. Mas a produção teórica e reflexiva destes artistas não se esgotava nos manifestos. Publicaram frequentemente revistas ou almanaques nos quais prolongavam o conteúdo dos seus manifestos e de algum modo explicavam a eventuais interessados as linhas mestras da sua actividade.


Esta necessidade de produzir literatura que servia de complemento aos seus trabalhos plásticos tem a ver com uma vontade de o artista fazer chegar ao observador a sua mensagem ou intenção. Isto porque a radicalidade visual da maior parte destes movimentos causava estranheza e, eventualmente, uma certa repulsa entre o público e a crítica especializada o que poderia provocar uma renúncia preconceituosa em relação aos objectos produzidos e expostos pelos artistas.


Cézanne propusera a necessidade de esvaziar o trabalho plástico da "literatura" por forma a libertar e potenciar as qualidades intrínsecas do objecto visual limpando-o de acessórios por ele considerados desnecessários e até mesmo nocivos ao trabalho do artista.

Os vanguardistas como que seguiam o conselho do mestre, produzindo trabalhos com uma carga formal e estética liberta dessa "literatura" visual, característica de trabalhos com contornos mais académicos, mas sentiam necessidade de afirmar as razões dessa atitude plástica.

Isto porque o público ainda não estava preparado para aceitar linguagens tão radicais em termos formais, nem seria capaz de descortinar a mensagem dos artistas perante objectos tão estranhos que poderiam apenas causar repulsa e estranheza.



"Este elemento intrínseco da noção de vanguarda [o manifesto] pode, porém, levar os críticos a dar crédito a esquematizações perigosas. Assim, ao falar do expressionismo, corre-se muitas vezes o risco de referir, no contexto de rápidas resenhas comemorativas, não um clima cultural bastante divulgado nos primeiros anos do século XX, mas um verdadeiro projecto artístico, organizado e unitário. A tendência em questão [o expressionismo] representa apenas o panorama global da pesquisa inovadora desses anos, ou seja, um mosaico de múltiplas experiências e maneiras de ser."


Comentário:
O autor do texto pretende sublinhar a diversidade de propostas artísticas e plásticas que encontramos sob a designação global de expressionismo. Basta que recordes as diferenças que encontramos entre os dois grandes grupos do expressionismo alemão " Die Brücke" e "Der Blaue Reiter" e que foram observadas e debatidas nas aulas em que abordámos o tema aqui em análise.
As linhas que se seguem aprofundam esta constatação.


"Historicamente, o expressionismo nasce e propaga-se nos países de língua alemã [o autor refere-se à Alemanha e à Áustria] entre 1900 e 1910, e depressa envolve - através de vastas redes de influência - outras nações do Ocidente europeu. Quando muito, poder-se-ia falar de um conjunto de propostas interligadas de uma certa forma, que compreende não só o grupo expressionista por excelência, Die Brücke, fundado em Dresden em 1905, mas também as obras de Kokoschka e de Schïele, em Viena, de Permeke e de Toorop, nos Países Baixos, certas experiências parisienses (Soutine, Rouault, Vlamink, Modigliani, Picasso até 1908) e, também, as telas e gravuras do norueguês Munch. Mas não só, já que o expressionismo penetra rapidamente em todos os domínios da actividade criativa: desde a escultura à arquitectura, das artes gráficas (artesanais e industriais) à literatura e à poesia, da música ao teatro, à cenografia, à coreagrafia e mesmo, ao recém-nascido e já muito dinâmico, cinema.
A poética expressionista reflecte, antes de mais, a crise de valores que a Europa do capitalismo tem de enfrentar. A incrível aceleração das tecnologias e dos processos produtivos, a desvalorização da economia agrícola em prol da indústria e dos grandes investimentos financeiros, as perturbações provocadas pala urbanização desenfreada e forçada, a prioridade da necessidade de consumo em detrimento da poupança, as várias falhas que daí decorrem (com o início da «luta de classes» nas grandes cidades) são factores que destroem as modalidades históricas de formação e transmissão da cultura. O próprio conceito de tradição, que durante séculos foi fundamental e iniludível, vai-se esvaziando progressivamente sob o impulso do «modernismo», que se impõe em todos os níveis da vida social e intelectual."


Comentário:
O expressionismo acaba por invadir todas as formas de expressão artística, tantos as tradicionais como a novas, produtos recentes dos avanços tecnológicos verificados naquela época.
O expressionismo parece invadir tudo o que tem a ver com o espírito humano, ganhando uma aura quase mística que tem a ver com a sua vontade de produzir continuamente uma crítica profunda sobre a condição de sermos humanos e as contradições impostas ao nosso espírito pela sociedade de consumo que então nasce e começa a mostrar a sua face menos humanista.


Proposta de trabalho de investigação: No último extracto do texto retirado do "Guia de História da Arte", acima reproduzido, é referida uma série de nomes de artistas de algum modo relacionados com o Expressionismo, enquanto conceito variado e globalizante em termos conceptuais e plásticos. "Googla" cada um deles e informa-te visualmente, completando assim a informação contida no texto.

segunda-feira, 7 de abril de 2008

Ouvindo o Mestre


Segue-se um excelente texto (como de costume) da autoria do Mestre Gombrich que na edição portuguesa do Público surge na página 561 e seguintes. Ouçamos então estas sábias palavras:
Imagem 1
"Mas afinal o que deve um pintor experimentar? Porque não se contenta em postar-se ante a natureza e pintá-la com todo o seu talento? A resposta parece ser que a arte perdeu o rumo porque os artistas descobriram que a simples exigência de "pintar o que vêem" é contraditória.

Isso talvez pareça um dos paradoxos com que os artistas e críticos modernos gostam de irritar um público atónito de longa data; mas, para quem acompanhou este livro desde o princípio, não deve ser difícil entender.

Recordemos como o artista primitivo costumava compor, digamos, um rosto a partir de formas simples, em vez de copiar um rosto de verdade (imagem 1).; reportamo-nos frequentemente aos egípcios e aos seus métodos de representar uma pintura a partir daquilo que conheciam e não do que viam. As artes grega e romana insuflaram vida nessas formas esquemáticas; a arte medieval usuou-as, por sua vez, para contar a história sagrada; a arte chinesa para contemplação. Em nenhum desses casos o artista era solicitado "a pintar o que via". Essa ideia só veio a surgir durante a Renascença. No começo tudo parecia correr bem. Perspectiva científica, sfumatto, cores venezianas, movimento e expressão somaram-se aos meios de que o artista dispunha para representar o mundo à sua volta; mas cada geração descobriu que continuavam a existir insupeitadas "bolsas de resistência", baluartes de convenções, fazendo os artistas aplicarem formas que tinham aprendido, em vez de pintarem o que realmente viam. Os rebeldes do século XIX propuseram-se realizar uma limpeza geral em todas essas convenções; uma após outra, elas foram atacadas, até que os impressionistas proclamaram que os seus métodos permitiam representar na tela o acto da visão com "exactidão científica".

As pinturas resultantes dessa teoria eram obras de arte muito fascinantes mas isso não nos deve cegar para o facto de a ideia em que se basearam é apenas uma meia verdade. De então para cá, são cada vez mais amplos os conhecimentos que que provam ser impossível separar com nitidez absoluta aquilo que vemos daquilo que conhecemos."


(...)

imagem 2

imagem 3
"Durante a revolução na arte que atingiu o clímax antes da I Guerra Mundial, a admiração pela escultura negra foi, na verdade, um dos factores que reuniram artistas jovens das mais variadas tendências. Tais objectos podiam ser adquiridos em lojas de antiguidades por muito pouco dinheiro e, assim, algumas máscaras tribais vindas de África substituíram as reproduções do Apolo de Belvedere (imagem 3) que tinham adornado os estúdios do artista académico. É fácil ver, ao olharmos para uma (...) escultura africana (imagem 2), porque tal imagem atraiu tão fortemente uma geração que procurava saída para o impasse da arte ocidental. Nem a fidelidade à natureza, nem a beleza ideal, que eram os temas gémeos da arte europeia, pareciam ter perturbado as mentes daqueles artífices, mas as suas obras possuíam precisamente o que a arte europeia parecia ter perdido nessa longa busca: expressividade intensa, clareza de estrutura e uma simplicidade linear na técnica."

Os próximos posts versarão o tema do Expressionismo para o qual este texto serve como introdução.
Gombrich explica-nos como os artistas europeus se deixaram seduzir pelas formas de expressão artística oriundas de civilizações que, até ao início do século XX, eram por eles desconhecidas ou, pelo menos, menosprezadas em termos criativos (e não só).
A História da Arte está repleta deste eterno redescobrimento da simplicidade estrutural da forma representada, uma espécie de retorno a uma certa inocência formal que, aliada a uma profunda capacidade para intelectualizar os processos criativos, estará na base de algumas transformações que iremos abordar nas próximas sessões.
As chamadas Vanguardas do início do século XX trarão para o centro do "palco" novíssimas formas de entender o fenómeno artístico e a arte ocidental irá enveredar definitivamente por caminhos menos evidentes e, potencialmente, muito mais "perigosos", não só para os artistas mas também, e sobretudo, para o público interessado nas peripécias desse mesmo fenómeno.