segunda-feira, 7 de abril de 2008

Ouvindo o Mestre


Segue-se um excelente texto (como de costume) da autoria do Mestre Gombrich que na edição portuguesa do Público surge na página 561 e seguintes. Ouçamos então estas sábias palavras:
Imagem 1
"Mas afinal o que deve um pintor experimentar? Porque não se contenta em postar-se ante a natureza e pintá-la com todo o seu talento? A resposta parece ser que a arte perdeu o rumo porque os artistas descobriram que a simples exigência de "pintar o que vêem" é contraditória.

Isso talvez pareça um dos paradoxos com que os artistas e críticos modernos gostam de irritar um público atónito de longa data; mas, para quem acompanhou este livro desde o princípio, não deve ser difícil entender.

Recordemos como o artista primitivo costumava compor, digamos, um rosto a partir de formas simples, em vez de copiar um rosto de verdade (imagem 1).; reportamo-nos frequentemente aos egípcios e aos seus métodos de representar uma pintura a partir daquilo que conheciam e não do que viam. As artes grega e romana insuflaram vida nessas formas esquemáticas; a arte medieval usuou-as, por sua vez, para contar a história sagrada; a arte chinesa para contemplação. Em nenhum desses casos o artista era solicitado "a pintar o que via". Essa ideia só veio a surgir durante a Renascença. No começo tudo parecia correr bem. Perspectiva científica, sfumatto, cores venezianas, movimento e expressão somaram-se aos meios de que o artista dispunha para representar o mundo à sua volta; mas cada geração descobriu que continuavam a existir insupeitadas "bolsas de resistência", baluartes de convenções, fazendo os artistas aplicarem formas que tinham aprendido, em vez de pintarem o que realmente viam. Os rebeldes do século XIX propuseram-se realizar uma limpeza geral em todas essas convenções; uma após outra, elas foram atacadas, até que os impressionistas proclamaram que os seus métodos permitiam representar na tela o acto da visão com "exactidão científica".

As pinturas resultantes dessa teoria eram obras de arte muito fascinantes mas isso não nos deve cegar para o facto de a ideia em que se basearam é apenas uma meia verdade. De então para cá, são cada vez mais amplos os conhecimentos que que provam ser impossível separar com nitidez absoluta aquilo que vemos daquilo que conhecemos."


(...)

imagem 2

imagem 3
"Durante a revolução na arte que atingiu o clímax antes da I Guerra Mundial, a admiração pela escultura negra foi, na verdade, um dos factores que reuniram artistas jovens das mais variadas tendências. Tais objectos podiam ser adquiridos em lojas de antiguidades por muito pouco dinheiro e, assim, algumas máscaras tribais vindas de África substituíram as reproduções do Apolo de Belvedere (imagem 3) que tinham adornado os estúdios do artista académico. É fácil ver, ao olharmos para uma (...) escultura africana (imagem 2), porque tal imagem atraiu tão fortemente uma geração que procurava saída para o impasse da arte ocidental. Nem a fidelidade à natureza, nem a beleza ideal, que eram os temas gémeos da arte europeia, pareciam ter perturbado as mentes daqueles artífices, mas as suas obras possuíam precisamente o que a arte europeia parecia ter perdido nessa longa busca: expressividade intensa, clareza de estrutura e uma simplicidade linear na técnica."

Os próximos posts versarão o tema do Expressionismo para o qual este texto serve como introdução.
Gombrich explica-nos como os artistas europeus se deixaram seduzir pelas formas de expressão artística oriundas de civilizações que, até ao início do século XX, eram por eles desconhecidas ou, pelo menos, menosprezadas em termos criativos (e não só).
A História da Arte está repleta deste eterno redescobrimento da simplicidade estrutural da forma representada, uma espécie de retorno a uma certa inocência formal que, aliada a uma profunda capacidade para intelectualizar os processos criativos, estará na base de algumas transformações que iremos abordar nas próximas sessões.
As chamadas Vanguardas do início do século XX trarão para o centro do "palco" novíssimas formas de entender o fenómeno artístico e a arte ocidental irá enveredar definitivamente por caminhos menos evidentes e, potencialmente, muito mais "perigosos", não só para os artistas mas também, e sobretudo, para o público interessado nas peripécias desse mesmo fenómeno.

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