quarta-feira, 18 de março de 2015

4- O Drama Litúrgico (módulo 3)


O Drama Litúrgico*
significado de *Liturgia
s.f. A reunião dos elementos ou práticas que, regulamentados por uma igreja ou seita religiosa, fazem parte de um culto religioso.
Conjunto dos modos usados no desenvolvimento dos ofícios e/ou sacramentos; rito ou ritual.
Catolicismo. Segundo as ciências eclesiásticas, a história do culto católico.
P.ext. Também se pode referir à missa; a própria missa.

Pensa-se que os rituais litúrgicos estejam na origem das representações cénicas.
Estas representações, desfiles, poemas cantados (ditirambos) e danças estavam ligadas ao sagrado.
O desenvolvimento do teatro grego conferiu a tais representações um carácter  mais ligado à reflexão sobre as grandes questões da existência humana (tragédia) bem como à observação crítica da vida quotidiana (comédia).

Como vimos anteriormente, a igreja católica tentou limitar ao máximo o fenómeno teatral  considerando-o inapropriado e mesmo obra de forças diabólicas.
Tal como aconteceu como outras formas de manifestação artística ( arquitectura, a escultura, a pintura, a música, a literatura) a Igreja viria a apropriar-se da linguagem teatral, integrando-a  na sua estratégia de comunicação e difusão da Palavra de Deus.

A Palavra de Deus é pronunciada no decorrer de cerimónias encenadas com rigor e extrema precisão.
No espaço interior da casa de Deus existem regras de comportamento estritas para os fiéis que vão assistir e participar do ritual litúrgico.

Ao longo da Idade Média a celebração ritual que poderemos designar por missa não previa a participação (nem sequer a compreensão) do povo leigo.
Embora o povo assista à liturgia e se identifique com os monges que participam nos rituais, não tem participação directa na acção e muito menos compreende o que é dito pois não domina o latim.

Ao longo do século X terão sido introduzidas inovações nos rituais litúrgicos.

Em determinadas ocasiões, os monges passaram a incluir na celebração religiosa uma espécie de ilustração dramática de certas cenas do Evangelho, introduzindo diálogos no texto cantado ou dito pelos padres e monges.


A mais antiga terá sido o Quem Quaeritis, cujas falas são extraídas directamente dos textos evangélicos. Este episódio descreve a visita de 3 mulheres ao sepulcro de Cristo, que encontram vazio. Surge um anjo (ou anjos, as descrições da cena admitem diferentes situações) que lhes anuncia a ressurreição.
-          Quem procurais no sepulcro, cristãs?
-           Jesus Nazareno crucificado, oh celestes.
-           Não está aqui. Ressuscitou como havia profetizado. Ide e anunciai que ressuscitou.

Esta acção era interpretada por dois coros diferentes: um que interrogava (as 3 Marias) e outro que respondia (os anjos).
Mais tarde 3 clérigos* assumiam os papéis das mulheres e um sacerdote representava o anjo.

Significado de *Clérigo
s.m. Sujeito que faz parte da classe eclesiástica; aquele que alcançou as ordens sacras; cristão que exerce o sacerdócio.

O desenvolvimento destes motivos gerou verdadeiras representações dramáticas, definidas como “dramas litúrgicos” uma vez que estavam ligados ao ritual do qual eram uma extensão e um momento específico.

Frequentemente eram os padres que representavam o drama, intercalando a acção com o ritual da missa. Assim, o drama litúrgico utilizou o espaço da igreja como palco, a igreja como local onde se desenrola um grande espectáculo sagrado.

Tal como a missa, o drama litúrgico também podia concentrar-se numa pequena parte da igreja ou apoderar-se dela no seu conjunto e percorrê-la, em procissão, de uma ponta à outra.
Nas suas formas mais simples o drama litúrgico desenrolava-se num único centro de referência, geralmente no altar, ponto principal da planta da igreja à semelhança da basílica romana (ver Arte em Roma – algumas notas soltas, módulo 2).

O gesto assume valor simbólico e representativo.
O gesto e a acção têm uma importância equivalente à da palavra.
Todos estes elementos carregam significado. Cabe ao espectador aprender a interpretá-los isoladamente e no seu conjunto.
Este processo irá complexificar-se e ganhar características específicas.
Vão surgindo novos temas e narrativas.

A narração dos episódios bíblicos vai ganhando complexidade seja em termos narrativos, com maior continuidade e interacção dramática entre as personagens, seja em termos espaciais, ocupando diferentes espaços e ganhando adereços simbólicos.

A evolução cultural dá-se através da recuperação de formas antigas (clássicas ou populares) que são adaptadas a novas realidades.
A cultura não é estática nem definitiva.

A cultura transforma-se e adapta-se.

quarta-feira, 4 de março de 2015

3 - Mimos e Jograis (módulo 3)


O teatro da Antiguidade, tal como o descrevemos nos módulos anteriores, é destruído pela queda do Império Romano.

Nos mosteiros continuava-se a copiar as comédias e as tragédias da tradição clássica. Estes textos eram lidos mas não representados.

Na Alta Idade Média a ideia de teatro torna-se indefinida e nebulosa.
O teatro representado em grandes anfiteatros em ocasiões festivas, com numerosa assistência e grupos de actores específicos, deixa de existir.

Surgem numerosos profissionais que se dedicam a actividades relacionadas com as artes da representação.
São herdeiros directos dos mimos e dos actores que conhecemos em Roma.
As designações que os classificam são muito variadas (joculatores, mimi, scurrae, e ainda menestriers e trobadours, isto é: menestréis e trovadores).

menestrel 
1. Poeta medieval.
2. [Figurado]  Cantor e músico ambulante.
Plural: menestréis.

No entanto, a designação mais difundida e que mais contribui para criar uma imagem próxima daquilo que entendemos por actor será a do joculator (bobo, jogral) palavra que tem a sua raiz em jocus, jogo.
Esta ideia traduzirá também o conceito de acção teatral e de actor noutras línguas : spiel-spieler em alemão, play-player em inglês.

jogral
substantivo masculino
Truão, bobo; histrião.

A história dos jograis e dos actores em geral, ao longo de toda a Idade Média, é a história da sua condenação pela Igreja Católica que travará uma longa luta contra o teatro ao longo de séculos.

Compreende-se esta luta se tivermos em conta a revolução cultural protagonizada pelo cristianismo primitivo com a negação absoluta da cultura clássica, da qual o teatro era considerada a expressão mais mundana e diabólica.

mundano
(latim mundanus, -a, -um)
adjectivo
1. Próprio do mundo.
2. Profano.
3. Falta de moral, de comedimento.
4. Não virtuoso.
5. Dado aos prazeres do mundo.
substantivo masculino
6. Pessoa que aprecia as visitas, a sociedade, a convivência.

O cristianismo admite, sugere mesmo, reprimir a natureza, limitando a satisfação dos desejos e das necessidades para humilhar a carne.
Mas não admite que se possa alterar a natureza na medida em que, enquanto obra de Deus, é sublime e perfeita.

As condenações baseavam-se essencialmente em 3 constatações:

O jogral é vagabundo. Normalmente anda de terra em terra.  Não encena o seu espectáculo num lugar determinado, oferece-o.
Tanto representa em qualquer lugar onde se reúna um grupo de pessoas, como entra nas casas, principalmente nas casas dos ricos (que podem pagar os seus serviços) onde alegram os banquetes ou até mesmo dos camponeses por ocasião de casamentos ou baptizados.

O jogral é vão, pois a sua arte é vazia de conteúdo artístico e nada produz de útil. Para os padres da igreja o divertimento é perigoso e inútil e contrário à seriedade do estudo e da catequese.
Os textos (quando os há) apresentam-se paródicos e invertem os valores espirituais da Igreja.

O jogral é um fingidor. Desvirtua a imagem natural. O trabalho do actor que transfigura o seu corpo é considerado um pecado equivalente ao da mulher que se maquilha, ao luxo exagerado, às práticas anticoncepcionais, à sodomia e à investigação científica, práticas e  transformações da natureza consideradas diabólicas.

Assim, a condenação do fingimento, diz respeito a todo o tipo de disfarces os quais podemos considerar, de um modo geral, teatrais e também às festas populares, principalmente a grande festa carnavalesca.
A igreja condena o disfarce que, contra a natureza, transforma o homem em mulher e a mulher em homem e ambos em animais (pela cedência a todos os excessos e tentações).


O excesso de gesticulação e de vocalidade parece ter sido a marca estilística dos jograis, contorcionistas, cantores, acrobatas, ilusionistas, exibicionistas de animais amestrados, ou mimos medievais.

Mas os jograis também eram profissionais da palavra significante, ao contrário do que pensavam os moralistas. Principalmente da palavra crítica e narrativa.

Pagos muitas vezes para difamar, os jograis são o espírito crítico da sociedade. Os camponeses são o alvo preferencial da sua fácil e violenta ironia para divertimento dos mais ricos.
Além disso a sátira tinha também uma função informativa e o jogral desempenhava, um pouco, o papel de jornalista.


Distinguem-se 3 tipos de jograis:
Os que transfiguram os seus corpos com gestos e saltos abjectos, tirando ou pondo máscaras horríveis;
Os  que divertem as cortes dos poderosos dizendo mal ou gozando com os ausentes;
Os que compõem canções para celebrar os feitos grandiosos dos príncipes e  dos santos.
Estes últimos são verdadeiros cantores populares e, de certo modo, tolerados pela Igreja quando o seu trabalho é considerado digno e respeitoso da moral.