sexta-feira, 28 de setembro de 2007

Sobre Luís XIV (outra lição do Mestre Gombrich)


(…)Um ano depois da morte do cardeal (Richelieu), em 1643, o rei Luís XIV subiu ao trono. Tinha quatro anos naquela altura e o seu reinado ainda conti­nua a ser o mais longo da História. Foi rei até 1715, durante setenta e dois anos. Além disso, era um rei a sério. Não enquanto era criança, mas logo depois de o tutor, o cardeal Mazarin, ter morrido (Mazarin foi o sucessor do cardeal Richelieu), altura em que Luís XIV quis começar a reinar sozinho. Deu ordens para que ninguém, a não ser ele, pudesse passar passaportes aos Franceses. A corte achou aquilo tudo muito engraçado, pensando que esse interesse não passava do capricho de um jovem rei. Pensou que ele depressa se ia cansar de rei­nar. Mas isso não aconteceu. Para Luís XlV, ser rei não era um sim­ples acidente de nascimento. Para ele, era como se tivesse recebido o papel principal numa peça de teatro que tinha de representar até ao resto da vida. Nunca ninguém, nem antes nem depois dele, aprendeu tão bem esse papel, nem o representou com tanta dignidade e ceri­mónia até ao fim da vida.
Luís XIV assumiu todos os poderes que tinham sido primeiro de Richelieu e depois de Mazarin. A nobreza tinha poucos direitos para além de ver Luís XIV a desempenhar o seu papel. Esta actuação sole­ne - que se chamava lever - começava cedo, às oito da manhã, quando ele se dignava levantar da cama. Os primeiros a entrar no quarto de cama eram os príncipes reais do mesmo sangue, com o camarista da corte e o médico. Depois, os criados apresentavam-lhe com grande cerimónia e em vénia duas grandes perucas encaracola­das e empoadas. O rei escolhia uma delas consoante a inclinação daquele dia e depois vestiam-lhe uma magnífica camisa de noite antes de ele se sentar ao lado da cama. Só nessa altura é que os nobres de hierarquia mais elevada, os duques, podiam entrar no quarto; a seguir, enquanto o rei ia sendo barbeado pelos seus secretários, entra­vam à vez os oficiais e diversos funcionários. Finalmente, abriam-se as portas de par em par para que lá entrasse toda uma hoste de esplên­didos dignatários - mestres-de-cerimónias, governadores, prínci­pes da Igreja e favoritos do rei - que vinham admirar o espectáculo solene de Sua Majestade o Rei a ser vestido.
Estava tudo regulamentado até ao mínimo detalhe. A maior honra que se podia ter era a permissão para apresentar ao rei a camisa a vestir, que se aquecia antes com cuidado. Essa honra era concedida ao irmão do rei ou, na ausência dele, à pessoa seguinte da hierarquia. O camarista segurava numa manga, um duque segurava na outra e o rei metia-se dentro da camisa. O processo continuava assim até o rei ficar completamente vestido, com meias de seda de cores vivas, cal­ções de seda que davam pelo joelho, um gibão de cetim brocado e uma faixa azul-celeste, com a espada na cintura, um casaco bordado e um colarinho de renda que um funcionário de elevado posto, o guar­dião dos colarinhos do rei, lhe apresentava numa bandeja de prata. O rei saía então dos seus aposentos, com chapéu de pluma e bastão na mão, sorridente e elegante, e entrava no grande salão com uma sauda­ção polida e cordial para toda a gente, enquanto as pessoas que o rodeavam se afastavam para o deixar passar com expressões de espanto e declaravam que, naquele dia, o rei estava mais belo do que Apolo, o deus do Sol, e mais forte do que Hércules, o herói da Grécia Antiga. Ele era o próprio Sol divino, le Roi Soleil - O Rei-Sol, que dava o calor e a luz de que dependia toda a vida na Terra. Era como o faraó, pensaste tu se calhar, porque também lhe chamavam Filho do Sol. Só que havia uma grande diferença. Os antigos Egípcios acredi­tavam mesmo nisso, enquanto para Luís XIV era só uma espécie de jogo em que e todas as outras pessoas sabiam que aquilo não passava de uma representação cerimoniosa, bem ensaiada e magnífica.
Na ante câmara real, depois das preces matinais, o rei anunciava o programa do dia. Depois seguiam-se muitas horas de trabalho a sério que ele fazia para controlar pessoalmente todos os assuntos de Estado. Para além disso, faziam-se muitas caçadas e havia bailes e produções teatrais de grandes poetas e actores que a corte apreciava e a que o rei assistia sempre. Todas as refeições implicavam uma cerimónia tão trabalhosa como o lever, e até o acto de ir para a cama era uma complicada produção parecida com o ballet, que deu origem a alguns momentos cómicos. Por exemplo, toda a gente tinha de fazer uma vénia ao passar pela cama do rei, como os fiéis fazem no altar da igreja, mesmo quando o rei não estava lá. Sempre que o rei estava a jogar às cartas ou a conversar com alguém havia uma multi­dão de pessoas a uma distância respeitosa, atentas a todas as pala­vras do soberano.
O objectivo de todos os homens da corte era vestirem-se como o rei, transportar o bastão como ele fazia, usar o chapéu como ele, sentar-se e movimentar-se como ele. O objectivo de todas as mulhe­res era agradar-lhe. Usavam colarinhos de renda e vestidos amplos de tecidos ricos e adornados com jóias preciosas, que faziam frufru.
A vida girava à volta da corte e tinha por cenário os palácios mais magníficos que alguma vez tinham existido. Os palácios eram a gran­de paixão de Luís XlV. Houve um de nome Versalhes que ele mandou construir para si próprio nos arredores de Paris. Era quase tão grande como uma cidade, com um número infinito de quartos revestidos a ouro e damasco, e candelabros de cristal, espelhos aos milhares, e mobília que era toda cheia de curvas e ouro, com estofos de veludo e de seda. Nas paredes estavam pendurados quadros espantosos em que se podia ver Luís XIV vestido de muitas formas diferentes. Num dos quadros, Luís XIV está vestido de Apolo, e todos os países da Europa lhe prestam homenagem. Os jardins eram ainda maiores do que o palácio. Tudo o que havia nos jardins era magnífico, elaborado e teatral. Não havia árvore que crescesse como lhe apetecia, nem arbusto que mantivesse a forma natural. Cortava-se, aparava-se e modelava-se tudo o que era verde para dar origem a vedações de folhagem, sebes arqueadas, grandes relvados e canteiros de flores em espiral, avenidas e pracetas, adornados com estátuas, lagos e repuxos. Sendo obrigados a viver na corte, os duques poderosos do antigamen­te e as suas esposas calcorreavam os caminhos de gravilha, trocando comentários espirituosos e polidos sobre a forma como o embaixa­dor da Suécia tinha feito uma vénia e outras coisas desse género.
Pensa só quanto devia custar ter um palácio assim e um estilo de vida destes! O rei tinha duzentos criados só ao serviço dele, mas isso era apenas uma pequena parte. No entanto, Luís XIV tinha ministros espertos, que eram quase todos homens de origem humilde escolhidos pelas suas capacidades extraordinárias. Estes homens eram peritos em extrair dinheiro ao país. Controlavam muito bem o comércio externo e estimulavam ao máximo os ofícios e a indústria de França. O custo real recaía sobre os camponeses, que eram sobrecarregados com impostos e deveres de todo o tipo. Enquanto na corte se comia em pratos de ouro e prata, a transbordar com manjares da melhor qualidade, os camponeses comiam restos e ervas daninhas.
Apesar de tudo, a vida na corte não era o que tinha mais custos. Mais dispendiosas eram as guerras em que Luís XIV se metia, muitas vezes só com o objectivo de aumentar o poder que já tinham à custa dos países vizinhos. Com o exército imenso e bem equipado que tinha, invadiu tanto a Holanda como a Alemanha, e conquistou, por exemplo, Estrasburgo aos Alemães, sem oferecer nenhum pretexto verdadeiro para essas acções. Via-se a si mesmo como o senhor de toda a Europa, e, num certo sentido, até o era. Todos os grandes homens da Europa o imitavam. Em breve, todos os príncipes alemães - mesmo aqueles que apenas possuíam um pedaço miserável de terra - tinham o seu próprio palácio gigante, ao estilo de Versalhes, com muito ouro e damasco, sebes aparadas, homens de grandes cabeleiras, senhoras empoadas com vestidos volumosos, cortesãos e aduladores.
Tentavam imitar Luís XIV de todas as formas, mas havia sempre alguma coisa em falta. Esses príncipes eram o que Luís XIV só fingia ser: eram imitações de reis, um pouco cómicos, de ar pomposo e rou­pas estilosas todas reluzentes. Luís XIV era mais do que isso. Caso não acredites em mim, vou mostrar-te parte de uma carta que ele escreveu ao neto, quando este se ia embora para se tornar rei de Espa­nha: «Nunca favoreças quem te adula mais, mantém sim perto de ti quem se arrisca a desagradar-te para o teu próprio bem. Nunca esque­ças os negócios por causa do prazer, organiza a tua vida de modo a teres tempo para relaxar e divertir-te. Dá toda a tua atenção à governa­ção. Informa-te o mais que puderes antes de tomar uma decisão. Faz todos os esforços por conhecer homens distintos, para poderes recor­rer a eles quando tiveres necessidade. Sê cortês com toda a gente, não ofendas ninguém.» Eram estes os princípios orientadores do rei Luís XIV de França, aquela mistura espantosa de vaidade, encanto, extra­vagância, dignidade, indiferença, frivolidade e trabalho a sério.

E. H. Gombrich, Uma Pequena História do Mundo, editora Tinta da China; páginas 221 a 224

A última frase deste texto, quando Gombrich resume as características principais de Luís XIV, acaba por ser uma excelente metáfora do próprio estilo Barroco. O Rei Sol foi, ele próprio, um verdadeiro monumento ao espírito artístico da época em que viveu.

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